sexta-feira, 30 de julho de 2010

ao antónio

o bicho acabou por levar-te, antónio. esse cabrão de riso cínico à espera numa qualquer estação de um novo corpo de um novo órgão para se instalar. sabes, antónio, quantas vezes vi esse filho da puta a apagar sorrisos a amputar a esperança de olhares ainda inocentes. mas tu venceste-o durante dois anos, antónio. lembro-me do nuno a chamar-te ao palco e a entregar-te o prémio em lágrimas, esse palco onde sempre deste a vida aos outros. e continuarás a dá-la.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

às quintas-feiras saía à rua sem cabeça

era quinta-feira, e como nas demais quintas-feiras, retirava a cabeça de cima dos ombros e pendurava-a num dos cabides do vestíbulo, mesmo ao lado do cabide onde pendia o chapéu. saía para a rua sem a cabeça e por onde passava ouvia dizer lá vai o homem que perdeu a cabeça. e ele tirava o chapéu e acenava com a cabeça a sorrir e continuava a jornada sem a cabeça.


terça-feira, 27 de julho de 2010

às terças-feiras jejuava

todas as terças-feiras jejuava. fazia-o desde que fora atingido a uma terça-feira por um raio, enquanto assaltava o pomar de laranjas de um convento. comia um pão sem sal pela manhã e um copo meio de água antes de sair para o emprego. na pausa para o café apenas dava uma passa na beata de segunda-feira e guardava na algibeira a queca com a secretária para a quarta-feira. durante o almoço descascava laranjas a título voluntário no seminário e ao final da tarde instalava pára-raios nas torres dos edifícios. à noite bebia a outra metade de água no copo e adormecia nu sobre o chão de mármore da cozinha.

o enterro

o homem vestiu o fato preto, deu o nó ao pescoço na gravata de seda italiana preta e saiu de luto na direcção do seu próprio funeral. durante as exéquias não conteve as lágrimas no momento em que o padre dirigiu um rol infinito de elogios ao morto, que era ele próprio ali deitado no caixão de madeira do brasil preta. mas o momento da sua própria cerimónia fúnebre que realmente lhe destroçou o peito foi ver todas as mulheres que amara em vida, juntas e em uníssono, a enterrarem-no sob a terra fria. e ele que lhes havia dado tanto calor.